Aqui farei um comparativo entre o poema de Carolina Maria de Jesus e o primeiro livro de Dostoiévski, Gente Pobre. Ambos compartilham semelhanças em sua forma de expressão: enquanto Gente Pobre é uma obra epistolar, narrada através de cartas, Carolina escrevia em forma de diário, trazendo um tom intimista e confessional.
Ao ler o poema de Carolina Maria de Jesus, imediatamente me veio à mente a obra de Dostoiévski, pois ambos exploram as dores e angústias dos marginalizados, retratando a pobreza e a solidão com profunda sensibilidade.
Carolina Maria de Jesus foi uma escritora brasileira de grande relevância, mas permaneceu anônima até 1960, quando seu primeiro livro, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, foi publicado. Sua obra expôs a dura realidade das favelas e chamou atenção para questões sociais ignoradas por décadas.
Nascida em 14 de março de 1914, na cidade de Sacramento, Minas Gerais, Carolina era uma mulher negra que enfrentou enormes desafios ao longo da vida. Completou apenas dois anos de estudos formais, mas cultivava um profundo amor pela literatura. Em 1937, mudou-se para São Paulo, onde passou a morar na favela do Canindé. Para sustentar seus três filhos como mãe solteira, trabalhava como catadora de papéis. Mesmo assim, escrevia incansavelmente à noite, registrando em diários e poemas sua visão crítica da vida e das condições desumanas da favela.
Carolina chamou a atenção do jornalista Audálio Dantas, que, ao conhecer seus manuscritos, ajudou a levar suas histórias ao público. O lançamento de Quarto de Despejo foi um marco: o livro vendeu mais de um milhão de exemplares e foi traduzido para 14 idiomas, incluindo inglês, francês, alemão e japonês. A obra descreve com crueza o cotidiano de privações, fome e violência na favela, destacando também a resiliência e a força de uma mulher que lutava para dar uma vida melhor aos filhos.
Carolina escreveu outros livros, como Casa de Alvenaria (1961), onde relatava as dificuldades após a fama, e Pedaços da Fome (escrito em 1963, mas publicado postumamente). Embora tenha ganhado destaque internacional, enfrentou preconceitos raciais e de classe no Brasil, que a relegaram novamente ao ostracismo. Carolina faleceu em 13 de fevereiro de 1977, em Parelheiros, São Paulo, com pouco reconhecimento por sua contribuição à literatura brasileira.
Sua obra é um testemunho poderoso da desigualdade social e racial no Brasil, e sua voz permanece ecoando como um símbolo de resistência. Mais do que um relato, Quarto de Despejo é um chamado à empatia e à ação para mudar as estruturas que perpetuam a pobreza. Carolina Maria de Jesus provou que, mesmo nos contextos mais adversos, a arte e a palavra podem se erguer como ferramentas de transformação social.
Poeta, em que medita?
Por que vives triste assim?
É que eu a acho bonita
E você não gosta de mim.
Poeta, tua alma é nobre
És triste, o que o desgosta?
Amo-a. Mas sou tão pobre
E dos pobres ninguém gosta.
Poeta, fita o espaço
E deixa de meditar.
É que... eu quero um abraço
E você persiste em negar.
Poeta, está triste eu vejo
Por que cisma tanto assim?
Queria apenas um beijo
Não deu, não gosta de mim.
Poeta!
Não queixas suas aflições
Aos que vivem em ricas vivendas
Não lhe darão atenções
Sofrimentos, para eles, são lendas.
Pobreza e afeto: um olhar sobre Gente Pobre, de Dostoiévski, e Carolina Maria de Jesus
No poema de Carolina Maria de Jesus, o poeta expressa sua tristeza diante de um amor não correspondido, marcado por sua condição social e pela rejeição que sente. Essa dor ressoa intensamente em Gente Pobre, o romance de estreia de Fiódor Dostoiévski, que narra a troca de correspondências entre dois personagens igualmente esmagados pela pobreza e pela exclusão.
O Enredo:
A história se passa em um dos bairros mais miseráveis de São Petersburgo e gira em torno de dois personagens principais:
O Funcionário: Um homem de meia-idade, humilde e generoso, que trabalha como copista. Ele mora em um quarto apertado e gasta o pouco que tem para ajudar sua vizinha e amiga por quem nutre um amor silencioso.
A Costureira: Uma jovem órfã, marcada por tragédias pessoais e dificuldades financeiras, que trabalha costurando para sobreviver. Ela compartilha com o funcionário sua visão melancólica da vida através das cartas que trocam.
Os dois constroem uma relação profunda por meio dessas cartas, nas quais relatam os acontecimentos cotidianos e confidenciam suas dificuldades e sentimentos. Apesar do vínculo afetivo que os une, a extrema pobreza os impede de concretizar seu amor através do casamento.
Conforme o enredo se desenvolve, os desafios da sobrevivência e as pressões sociais afastam ainda mais os dois. Várvara, a costureira, vê-se forçada a aceitar o casamento com outro homem, uma decisão que ela toma mais por necessidade do que por vontade, em busca de alguma segurança financeira. Enquanto isso, Makar, o funcionário, resigna-se à perda do que nunca pôde ser plenamente seu, sacrificando seu desejo pela felicidade de Várvara.
Intersecções com o poema de Carolina Maria de Jesus:
O poema de Carolina e o romance de Dostoiévski dialogam na maneira como revelam a dor do amor não realizado e a indiferença da sociedade para com os pobres. Assim como o poeta do poema deseja um beijo e um abraço que nunca vêm, Makar deseja compartilhar sua vida com Várvara, mas as limitações impostas pela pobreza tornam esse desejo impossível.
Além disso, o lamento do poeta – "Sofrimentos, para eles, são lendas" – reflete a mesma crítica social presente no romance, em que os ricos, vivendo em suas “ricas vivendas”, ignoram a dura realidade dos pobres.
Reflexão final:
Em Gente Pobre, Dostoiévski lança luz sobre a complexidade emocional dos pobres, que possuem sonhos, paixões e sofrimentos tão profundos quanto os das classes mais privilegiadas. De forma semelhante, Carolina Maria de Jesus, em seu poema, evidencia a humanidade dos marginalizados, mostrando que seus desejos e dores são universais.
Essas obras, separadas por séculos e contextos diferentes, convergem ao mostrar que, mesmo na pobreza mais extrema, a necessidade de amor, atenção e dignidade permanece viva – e dolorosamente inalcançável.
Fiódor Dostoiévski: o mestre da alma humana e da crítica social
A primeira obra publicada de Fiódor Dostoiévski, Gente Pobre (1846), marcou sua estreia na literatura russa como um escritor sensível às questões sociais. Nessa obra epistolar, Dostoiévski já demonstrava seu interesse em explorar a miséria humana, a desigualdade e a complexidade psicológica de seus personagens. Nascido em 11 de novembro de 1821, em Moscou, o autor inicialmente seguiu a carreira militar, formando-se em Engenharia na Academia Militar de São Petersburgo em 1843. No entanto, sua verdadeira paixão pela escrita logo o afastou da engenharia e o conduziu à literatura, onde se consagraria como um dos maiores romancistas de todos os tempos.
Além de Gente Pobre, Dostoiévski escreveu uma série de obras-primas que continuam a influenciar a literatura e a filosofia global:
Crime e Castigo (1866): Considerada uma de suas obras mais importantes, narra o conflito moral de Raskólnikov, um jovem que comete um assassinato e enfrenta uma luta interna devastadora entre culpa e justificativa.
O Idiota (1869): Um romance que apresenta o Príncipe Míchkin, um personagem puro e ingênuo, como um contraste ao cinismo e à corrupção da sociedade.
Os Demônios (1872): Um retrato sombrio dos movimentos revolucionários e das consequências do radicalismo político na Rússia.
O Adolescente (1875): Uma história de amadurecimento centrada em Arkádi Dolgorúki, que busca encontrar seu lugar em um mundo marcado por contradições sociais e morais.
Os Irmãos Karamázov (1879): Uma obra monumental que examina questões filosóficas como a existência de Deus, o livre-arbítrio e a moralidade, através da história de uma família disfuncional.
A singularidade de Dostoiévski:
As obras de Dostoiévski são conhecidas por suas profundas reflexões sobre a alma humana, apresentando personagens marginalizados e confrontando as questões sociais e políticas de sua época. Seus romances frequentemente utilizam o fluxo de consciência, permitindo ao leitor mergulhar nos pensamentos mais íntimos de seus personagens. Ele também abordou temas como a luta pela redenção, a busca de significado na vida e os dilemas éticos.
Dostoiévski viveu em um período de grande turbulência política na Rússia e não hesitou em criticar as estruturas de poder, o niilismo e os movimentos radicais, refletindo as tensões que moldavam a sociedade. Suas obras transcenderam a literatura e influenciaram pensadores como Friedrich Nietzsche, que admirava sua exploração da moralidade, e Jean-Paul Sartre, que reconhecia a importância existencialista de seus questionamentos.
Legado:
Fiódor Dostoiévski não apenas revolucionou a literatura com sua abordagem psicológica e filosófica, mas também lançou as bases para debates éticos e políticos que ressoam até hoje. Sua capacidade de retratar o sofrimento humano e a busca pela redenção continua a fascinar leitores e estudiosos ao redor do mundo. Através de suas narrativas, Dostoiévski convida todos a confrontar as sombras e as luzes da alma humana, tornando suas obras atemporais e universais.
Ordem cronológica dos livros de Dostoiévski:
1846: Gente Pobre
1846: O Duplo
1847: A Senhoria
1848: Noites Brancas
1849: Niétotchka Niezvânova
1849: Um Pequeno Herói
1859: A Aldeia de Stepántchikovo e seus Habitantes
1859: O Sonho do Titio
1859: O Sonho de Petersburgo em Verso e Prosa
1861: Humilhados e Ofendidos
1862: Recordações da Casa dos Mortos
1862: Uma História Desagradável
1864: Memórias do Subsolo
1865: O Crocodilo
1866: Crime e Castigo
1866: Um Jogador
1869: O Idiota
1870: O Eterno Marido
1872: Os Demônios
1873 : Bobók
1873: Diários de um Escritor
1875: O Adolescente
1876: O Mujique Marei
1880: Os Irmãos Karamazov
Livros de Carolina Maria de Jesus
1960: Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada
1961: Casa de Alvenaria: Diário de uma Ex-Favelada
1963: Provérbios
1963: Pedaços de Fome
s.d.: Diário de Bitita
1996: Antologia Pessoal
1996: Meu Estranho Diário
2014: Onde Estais Felicidade?
2018: Meu Sonho é Escrever
Poemas de Carolina Maria de Jesus
Poeta, em que medita?
Por que vives triste assim?
É que eu a acho bonita
E você não gosta de mim.
Poeta, tua alma é nobre
És triste, o que o desgosta?
Amo-a. Mas sou tão pobre
E dos pobres ninguém gosta.
Poeta, fita o espaço
E deixa de meditar.
É que... eu quero um abraço
E você persiste em negar.
Poeta, está triste eu vejo
Por que cisma tanto assim?
Queria apenas um beijo
Não deu, não gosta de mim.
Poeta!
Não queixas suas aflições
Aos que vivem em ricas vivendas
Não lhe darão atenções
Sofrimentos, para eles, são lendas.
A Rosa
Eu sou a flor mais formosa
Disse a rosa
Vaidosa!
Sou a musa do poeta.
Por todos sou contemplada
E adorada.
A rainha predileta.
Minhas pétalas aveludadas
São perfumadas
E acariciadas.
Que aroma rescendente:
Para que me serve esta essência,
Se a existência
Não me é concernente…
Quando surgem as rajadas
Sou desfolhada
Espalhada
Minha vida é um segundo.
Transitivo é meu viver
De ser…
A flor rainha do mundo.
Sonhei
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram Iivros
Que estavam nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi o meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas
Ao lado o padre rezava
Comoveu-me a sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me a salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento
Ele deu-me a extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o caixão
Eu sorri… e despertei.
Henrique Melo - Rede Sertão PB
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